Em Fevereiro de 1961 – vai, pois, para cinco
anos – vivíamos em Lisboa, a Livraria Bertrand encarregou meu marido, o escritor
Manuel de Seabra, de fazer uma antologia literária de Goa. Cuido que o principal
motivo que levou a Bertrand a dar tal passo, foi ele ser casado com uma goesa –
o que não deixa de ser curioso.
Mas isto de ser escritor profissional em
certos países é como andar a vender areia no deserto, e constitui regra sagrada
nunca recusar qualquer trabalho, por mais estapafúrdio que possa parecer, mesmo
que se trate de um ensaio sobre a vida psicológica dos selenitas ou um método
para aprender hausa sem mestre em 12 lições.
Mas o caso é que meu
marido, da Índia conhecia-me a mim, o Bhagavad Gitâ (que era o seu livro de
cabaceira), e mais uma ou duas dezenas de clássicos, filosóficos e poetas, mas
não tendo nenhum deles escrito em português. Quanto a mim, ao partir para
Lisboa, em 1958, nas atrapalhações de caixotes e embarques, deixara, sabe-se lá
onde, os poucos livros de autores goeses que possuía. Levei para Lisboa Camilo,
Eça e Herculano. Foi porter du charbon à Liverpool. De escritores goeses tinha
nomes apenas, os mais famosos, Nascimento Mendonça, Paulino Dias, Adeodato
Barreto, sei lá poucos mais.
Meu marido partiu, pois, quase do nada, e,
em dois meses de pesquisas nas bibliotecas portuguesas, conseguiu levar a bom
termo a sua antologia, intitulado “Goa, Damão e Dio”, que a critica considerou
criteriosa e exegética. Entretanto, tinha publicado um pequeno artigo no Diário
de Notícias de Lisboa, com o título, salvo erro: “Onde está a literatura goesa?”
(tenho a impressão de que não é mesmo este o título) onde pedia que lhe
mandassem informações. E um dia recebe o livro “No País de Súria”, de Paulino
Dias, enviado por um goês que nunca mais lhe apareceu. Paulino Dias foi decisivo
Manuel de Seabra viu-se, de súbito, perante um génio poético que não podia
continuar desconhecido nos países de língua portuguesa. Logo a seguir, organiza
também uma antologia de Moniz Barreto – o goês que criou a crítica literária em
Portugal.
(segue na 2a página)
E já não foi possível parar. Em
1962 Manuel de Seabra tinha já reunido material suficiente para fazer uma série
de dez palestras na rádio portuguesa sobre a literatura goesa, e uma conferencia
no Museu Soares dos Reis, no Porto, ilustrada por mim com leitura de poetas
goeses. E, sem dar por isso, eu própria, que até então assumira uma actividade
bastante marginal nas pesquisas, dedicando-me antes a escrever (em 1962
publiquei “Súria” e, poucos meses depois, “Monção”), vi-me também arrastada
irresistivelmente na descoberta da literatura esquecida da minha terra. E quando
em Abril de 1963, viemos fixar residência em Londres, as actividades
professionais de meu marido na BBC impediram-no de continuar a dedicar a este
trabalho o tempo e a atenção que até então lhe tinha merecido. Mas não era
possível deixar em meio tarefa já tão adiantada e, daí em diante, passei eu a
encarregar-me das pesquisas, desta vez no Museu Britânico, de resto riquíssimo
em coisas de Goa. Assim, pois, de 1961 a 1963 foi Manuel de Seabra o principal e
eu a colaboradora; de 1963 em diante, passei eu a dirigir as pesquisas, apenas
com a sua colaboração eventual.
Trabalhos desta índole são como bolas de
neve: vão aumentando à medida que rolam. Nenhum de nós previu as proporções que
isto iria tomar. Tem sido um não acabar de novos assuntos a incluir. Havia,
claro, a evolução histórico-mesológica da literatura em Goa. A isso não se podia
fugir. Mas num país bilingue, ou trilingue, ou lá o que somos, havia que estudar
o problema da linguagem, e isso levou-nos à Inquisição. A inquisição, por seu
turno, forçou-nos a encarar certos postulados, inerentes à personalidade do homo
goanensis. Isso conduziu-nos ao estudo do problema das castas e do lugar
histórico ocupado por Goa em relação a Portugal, à Índia e ao Mundo.
Depois surgiu-nos o mandó: como compreender o goês e a sua literatura
sem estudar o mandó ? E foi preciso analisar quase duas centenas de mandé,
fazendo estatísticas dos seus diferentes elements sociais, psicológicos,
históricos, indianos, portuguese, etx. Ah, e a Imprensa, claro, a Imprensa de
Goa! E dentro desse capítulo, a Imprensa literária! E os almanaques, que tão
importante papel desempenharam no desabrochar das letras em Goa? Havia que
estudar a fundo esse fenómeno. Pouco a pouco, sem darmos por isso, a obra a que
metemos obros foi crescendo. Já vai ultrapassando os limites de uma simples
história literária de Goa para se tornar praticamente uma história da cultura em
Goa.
Ao mesmo tempo, a ideia foi-se aperfeiçoando. Decidimos que a parte
histórico-critica seria acompanhada de uma grande antologia de escritores desde
Fernão Álvares do Oriente (“esse indiático”, como lhe chamou D. Francisco Manuel
de Melo) aos mais recentes poetas e contistas. Naturalmente, por fim de dar ao
texto um carácter exclusivamente critico, um Dicionário biográfico de autores
goeses tornava-se imprescindível. E decidimos meter mãos à obra. Os nossos
ficheiros continham já perto de seiscentos escritores. E decidimos incluir neste
Dicionário biográfico todos os goeses que, desde o século XVI, tenham publicado
seja que for, ainda que os que não tenham obra suficiente em nível ou quantidade
não sejam estudados na parte histórico-critica. Pois vimo-nos, de repente, a
braços com mais de duzentos escritores dos quais não possuíamos a mínima
informações biográfica.
Escrevi cartas, fiz apelos, dirigi-me a pessoas
de família, amigos, desconhecidos, a toda a gente que pudesse dar-me moradas e
nomes, pistas para encontrar elementos sobre esses duzentos autores. Macei muita
gente. E ainda continuo. Mas, nos últimos seis meses deste cartário, consequi
anular perto de cinquenta nomes da minha lista de escritores à procura de
biografia.
Mas alguns são casos desesperados. Por exemplo, o Pe. Caetano
Xavier de Abreu, que, em 1889, em Pangim, publicou o livro “Seis Anos da Nossa
Vida Pública”. Sei apenas que era natural de Saligão. Ou Adolfo da Costa e Ana
d’Ayala, que em 1907 publicaram, de colaboração, um livro intitulado: “De mãos
dadas”. Será possível algum dia obter as biografias destes e de mais de uma
centena de escritores que tenho na mesma situação? Só descobrindo filhos, netos,
parentes.
Não posso prever quando estará pronta esta obra. Já levamos
escritas cerca de 500 páginas da parte critica, mas ainda falta muito trabalho.
Talvez precisemos de mais uns dois anos. Mas tenho a esperança de que possa
contribuir para uma melhor tomada de consciência da personalidade cultural de
Goa, proporcionando uma base, à partir da qual os goeses, na imagem reflectida
dos seus valores, possam criar uma nova Renascença!
ResponderEliminarEstou muito impressionada com sua bigrafia, muito interessante. É sempre bom conhecer um pouco mais
da boa literatura, obrigada, boa tarde.
Sandra Sila.